sábado, 28 de maio de 2016

Da imprevisibilidade da vida



"Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum,
 porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam."
Salmo 23:4 (versão atualizada João Ferreira de Almeida) 


Acredito que me tornei adulta quando me dei conta que alguns dos sonhos que tive durante a infância e a adolescência não se realizariam automaticamente. Foi quando percebi que o roteiro perfeito que fazemos na cabeça enquanto vamos crescendo, em dado momento, foge do controle.
É certo que alcancei alguns dos projetos. No meu caso, estudar na melhor universidade do país, viajar para o exterior antes do que parecia possível, ter estabilidade financeira. Quando eu cheguei nesse ponto, uma parte do plano estava concluído. Vem, então, aquela sensação de tarefa cumprida. Mas e o restante? 
    Eu me desesperei quando percebi que outros projetos não aconteceriam dentro do meu tempo, dentro do que eu imaginei como ideal. Eu ainda não tinha trinta anos quando me veio à tona essa realidade. A vida não vem pronta! Algumas coisas fluem tão bem que parece que é só relaxar no barco que a maré vai trazer tudo o que desejamos. Não acho. 
  Não veio meio relacionamento perfeito que me daria uma família. Ainda não, perfeito não mais.
  Eu me senti uma azarada, infeliz. Até observar o mundo, a vida e as pessoas com olhos mais atentos. 
  Ainda não alcancei alguns dos meus sonhos, mas quem já realizou todos? Quem tem uma família perfeita e o trabalho dos sonhos? Quem tem família, trabalho e saúde intocáveis? Quem tem família, saúde, trabalho e alegria plena? 
  Todo mundo tem uma falta na vida. Todo mundo se frustra em alguma área. Ninguém está completo. Perceber essa realidade é duro. É ver a vida como ela é. Fui saindo da ilusão da infância. 
  Às vezes, o descamar dos olhos vem por uma experiência vivida por alguém muito próximo. É um divórcio que você nunca esperava, é uma doença de alguém que não merecia, aos nossos olhos. A vida vai ficando tão dura, tão crua. As ilusões vão se desfazendo. 
  Mas nada, nada pode ser comparado com o choque da morte. Esta, sim, nos faz ver a vida como ela é. 
   Eu realmente fiquei abalada quando em 2014, meu primo Adriano, aos 39 anos, com uma esposa linda, três filhos pequenos, um sorriso de derreter qualquer coração e uma alegria contagiante, de repente adoeceu. Em questão de duas semanas, ele morreu. Mal tivemos tempo de processar que ele estava doente. Não conseguimos visitá-lo no hospital. Ele se foi e eu fiquei com uma sensação horrível de que o mundo era vulnerável e que a qualquer momento meus pais ou meus irmãos poderiam morrer. A morte chegou tão perto! Poderia ter sido um deles. Poderia ter sido eu! 
   Durante quase dois anos eu não dormi direito. Meu sono era invadido por pensamentos do tipo: "se eu virar o braço, minha mãe morre. Se eu mexer a perna, minha irmã morre". Eles apareciam no limite entre o sono e o despertar, naquele momento em que você não sabe se está acordado ou dormindo e os sonhos parecem bem reais. Mas sumiam quando eu de fato acordava. Acordada, eu vivia em estado de alerta. Pensava na morte do meu primo, no quanto a vida era imprevisível, em que eu deveria focar, como aproveitar meus dias. Será que eu já estou na metade da vida? O que eu faço daqui pra frente? Às vezes, quando eu dormia na casa dos meus pais, eu ia conferir se eles estavam respirando à noite. 
   Nos últimos meses, o desânimo começou a tomar conta de mim. Eu me sentia cansada, sem vontade de trabalhar, como se estivesse "empurrando a vida com a barriga". Às vezes, vinha à minha mente: relaxar, se divertir, relaxar... Então meu pai morreu. 
  Não estava no meu roteiro, fugiu ao meu controle. 
  A minha preocupação, meu estado de alerta, meus sonhos obsessivos, nada impediu que aos 59 anos ele tivesse um infarto numa quinta-feira ensolarada, quando eu saia para curtir o feriado na praia. 
  O que significa isso, meu Deus? O que significa morrer? O significa essa ausência?
  O evento social de despedida é quase um entorpecente. Eu chorava com a mente, mas a dor ainda não tinha chegado ao meu coração. Eu não conseguia sentir direito. Eu ainda não consegui entender. Antônia me disse que às vezes a dor vem como um tsunami, às vezes como uma infiltração. Eu me sinto assim, com choro guardado por todas as partes do meu corpo, podendo vazar a qualquer hora, fora de lugar. 
  Viver assim é cansativo. Quero viver sem medo de morrer. O meu medo não impediu a morte do meu pai. 
   Totalmente vulneráveis. Somos assim. Não há o que controlar, não há roteiro. 
  Alguns momentos, tenho vontade de chorar, outros, quero ficar quieta. Esse caminho novo, totalmente novo e indesejável. Ao mesmo tempo, inevitável. É o vale.
  Eu aprendi a confiar em Deus durante toda a vida. Por que não confiar agora? Ir por um caminho escuro, desconhecido, cuja a luz da lanterna só alcança um passo de cada vez. Entretanto, inexplicavelmente, há uma sustentação. Braços fortes nos seguram, vozes carinhosas nos incentivam. Não digo que não tenho vontade de parar e desistir. Porém a vida chama com um som suave.
   Eu que sempre li o salmo pensando em minha própria vida, penso que há outra interpretação. Passamos pelo vale da sombra da morte e meu pai ficou ali. Agora, só o Senhor, o meu pastor, para nos ajudar a continuar o caminho. O imprevisível caminho chamado vida. 


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